terça-feira, 4 de março de 2014

Encontro da Geografia com a História


Análise: O que está em jogo é o direito de um país decidir o seu destino



Demétrio Magnoli - Colunista - Folha de São Paulo
02/03/2014.

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O que está em jogo na Ucrânia?

A crise ucraniana mostra que protestos em massa ainda são capazes de resultar em uma transição negociada

Timothy Garton Ash* - O Estado de S.Paulo
23 de fevereiro de 2014 | 2h 04
 
Além das barricadas em chamas e dos corpos nas ruas, aqui estão cinco elementos importantes em jogo na atual insurreição na Ucrânia.

1. O futuro da Ucrânia como
Estado-nação independente
A violência intensa dentro de um país, mesmo não se tratando de uma guerra civil, pode levar a dois caminhos totalmente diferentes. Pode dilacerar o Estado, como na Síria e na ex-Iugoslávia ou, se as pessoas cooperarem, isso poderá consolidar o Estado-nação, como na África do Sul. Um Estado-nação é aquele em que uma identidade nacional civil compartilhada é criada pelo Estado em vez de uma única identidade nacional étnica consolidada por ele.
Uma razão pela qual os últimos tempos na Ucrânia têm sido caóticos é que o país, embora independente há mais de duas décadas, não é um Estado em pleno funcionamento nem uma nação completamente formada. Usar a frase "as forças da lei e da ordem", sobre o que ocorreu na Ucrânia na semana passada, é como dizer "chá e sanduíches" para descrever uma aguardente feita de vodca, cartilagem e sangue.
O presidente Viktor Yanukovich é um bandido, mas um bandido ineficaz. Forças de segurança eficientes e disciplinadas não atiram contra manifestantes, matando-os aleatoriamente, abandonando as ruas para eles em seguida.
Similarmente, o governo, o Parlamento e a economia não são como aquelas de um Estado europeu normal. Eles estão infiltrados e são manipulados por um número extraordinário de oligarcas e pela família do presidente. Para dar um exemplo, de acordo com a edição ucraniana da revista Forbes, o filho de Yanukovich, um dentista, venceu 50% de todas as licitações feitas pelo Estado em janeiro de 2014 - possivelmente a maior extração de dentes da história.
Isso, como também a brutalidade das milícias, é o que mais enfurece os ucranianos e o que alguns deram suas vidas para mudar. No entanto, se o acordo proposto na quinta-feira - no sentido de um governo de coalizão, uma reforma constitucional que dá mais poderes ao Parlamento e uma eleição presidencial antes do fim do ano - se mantiver, então, esses dias sangrentos podem ser tratados nos livros de história da Ucrânia como um capítulo decisivo no caminho de uma nação independente. Caso contrário, persiste a ameaça de desintegração.
2. O futuro da Rússia como
Estado-nação ou um império
Com a Ucrânia, a Rússia ainda é um império - sem a Ucrânia, a Rússia tem a chance de se tornar um Estado-nação. O futuro da Ucrânia é mais crucial para a identidade nacional da Rússia do que o da Escócia é para a Grã-Bretanha. Há séculos, as pessoas que viveram onde hoje está a Ucrânia eram russos nativos. Neste século, as pessoas que se identificam como ucranianos moldarão o futuro do que hoje é a Rússia.
3. O futuro de Vladimir Putin
Konstantin von Eggert, jornalista independente russo, observou certa vez que o fato mais importante da política russa na última década não ocorreu na Rússia. Foi a Revolução Laranja, de 2004, na Ucrânia. Para o governo de Vladimir Putin, foi a mais e recente e mais ameaçadora de uma série de revoluções em 15 anos. Assim, com uma habilidade considerável e sucesso, os "tecnólogos políticos" de Putin desenvolveram técnicas para conter a onda - que envolveram brutalidade, naturalmente, mas também muito dinheiro, as Gongo's (ONGs organizadas pelo governo, na sigla em inglês) e a manipulação da mídia.
Quando Putin superou a oferta de associação feita pela UE à Ucrânia, repleta de regras, mas com pouco dinheiro, propondo uma ajuda de US$ 15 bilhões ao país, um político russo conhecido, Marat Gelman, tuitou que "a instalação de Maidan foi vendida por US$ 15 bilhões, o mais caro objeto de arte visto até hoje" - Maidan é a Praça da Independência de Kiev, epicentro dos protestos.
Entretanto, as coisas não ocorreram como planejado. Assim que Putin e Yanukovich se reuniram em Sochi, na segunda-feira, a Rússia liberou mais uma parcela dos US$ 15 bilhões. No dia seguinte, as milícias de Yanukovich começaram a usar munição real contra os manifestantes, cada vez mais desesperados e, às vezes, violentos. O fato de Putin estar disposto a pôr em risco o sucesso internacional das Olimpíadas de Sochi mostra o quão vital é a Ucrânia para ele. Agora, Putin se retirou taticamente, diante do que ocorreu, mas não tenhamos ilusões de que ele deixará de intervir.
4. O futuro da Europa como poder estratégico
Assim como a Ucrânia não está simplesmente dividida entre leste e oeste, também a questão geopolítica aqui não é se a Ucrânia se une à Europa ou à Rússia, mas se a Ucrânia se integrará cada vez mais na comunidade política e econômica da Europa, mantendo uma relação estreita com a Rússia. E também se a União Europeia defenderá seus valores fundamentais à sua porta, como deixou de fazer na Bósnia há 20 anos.
Está claro agora que a UE agiu mal ao dar um ultimato tipo "nós ou eles", no ano passado, sem oferecer à Ucrânia os recursos que o país necessitava desesperadamente e sem dar uma perspectiva clara de uma adesão ao bloco. Como disse o especialista em Ucrânia Andrew Wilson, a UE trouxe a baguete numa luta de facas. Nas últimas semanas, seu desempenho foi melhor. O compromisso proposto sexta-feira foi um sucesso verdadeiro dos chanceleres de França, Polônia e Alemanha. No entanto, uma Europa debilitada pela crise da zona do euro terá a imaginação estratégica e determinação no longo prazo?
5. O futuro da revolução
Já defendi que, na nossa época, 1989 suplantou 1789 enquanto modelo padrão de revolução: em vez de radicalização progressiva, violência e guilhotina, buscamos protestos pacíficos em massa seguidos por uma transição negociada. Esse modelo sofreu golpes recentemente, não apenas na Ucrânia, mas no outono violento que se seguiu à Primavera Árabe.
Mas, se esse frágil acordo for mantido e se for possível conter a fúria das ruas, a Europa pode mostrar mais uma vez que, ocasionalmente, aprendemos as lições da história.
*Timothy Garton Ash é colunista.
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 
 
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-que-esta-em-jogo-na-ucrania,1133443,0.htm - Acesso em 04/03/2014 - 12h54m